Suma Escatológica: Antropologia, política, meio ambiente e arte
terça-feira, 20 de novembro de 2012
Dia Nacional da Consciência Negra
Por Matilde Ribeiro
“A luta pela liberdade dos negros brasileiros jamais cessou.
Em 1971, um significativo capítulo de nossa história vinha à tona pela ação de
homens e mulheres do Grupo Palmares. Lá do Rio Grande do Sul era revelada a
data do assassinato de Zumbi, um dos ícones da República de Palmares. Passados
sete anos, ativistas negros reunidos em congresso do Movimento Negro Unificado
contra a Discriminação Racial cunharam o 20 de novembro como Dia da Consciência
Negra. Em 1978, era dado o passo que tornaria Zumbi dos Palmares um herói
nacional, vinculado diretamente à resistência do povo negro.
Herdamos os propósitos de Luiza Mahin, Ganga Zumba e legiões
de homens e mulheres negras que se rebelaram a um sistema de opressão. Lançaram
mão de suas vidas a se conformarem com a prisão física e de pensamento.
Contrapuseram-se ante às tentativas de aniquilamento de seus valores africanos
e contribuíram com seus saberes para a fundação e o progresso do Brasil.
Orgulhosamente, exaltamos nossa origem africana e
referendamos a unidade de luta pela liberdade de informação, manifestação
religiosa e cultural. Buscamos maior participação e cidadania para os
afro-brasileiros e nos associamos a outros grupos para dizer não ao racismo, à
discriminação e ao preconceito racial.
Que este 20 de Novembro, assim como todos os outros, seja de
muita festividade, alegria e renove nossas energias para continuarmos nossa
trajetória para conquista de direitos e igualdade de oportunidades. Estejamos
todos, homens e mulheres negras, irmanados nesta caminhada pela liberdade e
pela consciência da riqueza da diversidade racial!”
Matilde Ribeiro
Ministra da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
Zumbi dos Palmares
“A cada novo 20 de
novembro, Zumbi se espraia, amplia o seu território na consciência nacional,
empurra para os subterrâneos da história seus algozes, que foram travestidos de
heróis"
Sueli Carneiro
Quando tudo aconteceu...
1600: Negros fugidos ao trabalho escravo nos engenhos de
açúcar de Pernambuco, fundam na serra da Barriga o quilombo de Palmares; a
população não pára de aumentar, chegarão a ser 30 mil; para os escravos,
Palmares é a Terra da Promissão. - 1630: Os holandeses invadem o Nordeste
brasileiro. - 1644: Tal como antes falharam os portugueses, os holandeses
falham a tentativa de aniquilar o quilombo de Palmares. - 1654: Os portugueses
expulsam os holandeses do Nordeste brasileiro. - 1655: Nasce Zumbi, num dos mocambos
de Palmares - 1662 (?): Criança ainda, Zumbi é aprisionado por soldados e dado
ao padre António Melo; será baptizado com o nome de Francisco, irá ajudar à
missa e estudar português e latim. - 1670: Zumbi foge, regressa a Palmares. -
1675: Na luta contra os soldados portugueses comandados pelo Sargento-mor
Manuel Lopes, Zumbi revela-se grande guerreiro e organizador militar. - 1678: A
Pedro de Almeida, Governador da capitania de Pernambuco, mais interessa a
submissão do que a destruição de Palmares; ao chefe Ganga Zumba propõe a paz e
a alforria para todos os quilombolas; Ganga Zumba aceita; Zumbi é contra, não
admite que uns negros sejam libertos e outros continuem escravos. - 1680: Zumbi
impera em Palmares e comanda a resistência contra as tropas portuguesas. -
1694: Apoiados pela artilharia, Domingos Jorge Velho e Vieira de Mello comandam
o ataque final contra a Cerca do Macaco, principal mocambo de Palmares; embora
ferido, Zumbi consegue fugir. - 1695, 20 de Novembro: Denunciado por um antigo
companheiro, Zumbi é localizado, preso e degolado.
Fernando Correia da Silva
Serejo: O homem e seu lugar
Data: 25 outubro 2012 - Hora: 18:01 - Por: Vicente Serejo
Ormuz Barbalho Simonetti lança hoje, início da noite, na Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras suas memórias sobre os hábitos, costumes e
tradições da praia de Pipa no tempo de seus avós. Por isso transcrevo o
prefácio que escrevi para o seu livro que é também um registro documental e
visual dos traços culturais de um lugar que foi uma vila e hoje é o maior e
mais internacional balneário turístico do Rio Grande do Norte.
Lendo uma vez um ensaio
do professor Milton Santos, o grande erudito baiano, já desaparecido, e que nos
ensinou as melhores lições sobre a geografia humana – no sentido de fixar o
homem e seus espaços – bati os olhos numa inesperada citação de Winston
Churchill que dizia assim: “Primeiro construímos nossas casas; depois são elas
que nos constroem”.
Hoje, vejo não ser
muito diferente da noção de lugar. Nós também construímos os espaços de
vivência e, depois, esses espaços nos constroem. É tanto, que as pessoas do
interior costumam se referir ao seu território de origem – cidade, vila ou
povoado – com a expressão “meu lugar”.
Foi o que senti lendo
este livro sobre a história da Pipa, a praia dos avós de Ormuz, nosso maior
genealogista. Primo, não apenas pelas leis do bem-querer, e já seria bastante,
mas, também, pelas velhas raízes Barbalho Simonetti, família da minha avó
Edith, personagem humilde da genealogia que ele pesquisou para ser a própria
História da origem e dos caminhos da nossa gente.
Porque este A praia da
Pipa do Tempo dos meus avós conta a História de um lugar antigo que a família
de Ormuz escolheu para vencer o calor dos verões. E, se escolheu, é suficiente
o pioneirismo para fazê-la descobridora do lugar. Descoberta no sentido de
escolha. Eles foram inventores de um espaço vivencial que hoje, com as
narrativas de Ormuz, é recriado, como se fosse possível inventar um céu, o Céu
da Pipa, e nele soprar vida em todos os personagens de sua história humana.
Humana, porque vai além de sua toponímia, da história remota ou recente dos
seus lugares, da vida de seus personagens, na austeridade de uns ou na
simplicidade de outros.
Ormuz foi capaz de
remontar o mosaico das recordações, mas sem a pretensão de escrever uma
história formal. Talvez, e sem querer, uma pequena história, mas bem no modelo
dos franceses quando ensinaram que é preciso não esquecer de olhar a nova
história no seu cotidiano – sem reis, sem heróis e sem mártires.
Partindo de um
coloquialismo que assume desde o título, afinal é a história de um lugar onde
viveram seus avós, Ormuz Barbalho Simonetti foi um bom caçador de datas, fatos
e nomes. Capaz de não perdê-los de vista, e de reuni-los numa moldura de
histórias humanas sem as quais a própria História da Pipa não teria ido além de
uma historiografia. Revelada num conjunto de artigos e crônicas nascidos nas
páginas de um jornal, e aqui reunidos buscando a perenidade do livro.
Talvez este corte
proustiano, no qual renasce a memória da infância no seu rol de lembranças
confessadas, tenha mesmo a função de derramar sobre os olhos dos leitores o mel
da saudade. Faz sentido. A memória é a forma de salvar um lugar da sua
mundialização, conceito que uniformiza, sem seus traços únicos, todos os
espaços do Homem. Só o imaginário pode preservar sua unicidade e singularidade
físicas e humanas, como se vencesse o desmonte que o tempo sabe engendrar.
E Ormuz é cuidadoso no
seu jeito de olhar e anotar. Vai, capítulo a capítulo, registrando tudo como se
nada pudesse ser esquecido. Em cada lance de olhar, um retrato detalhado da sua
visão cheia de saudade. Das velhas viagens abrindo caminhos, os primeiros
veranistas, o desenho mágico de hábitos, costumes e tradições. Salva do
esquecimento, como se tirasse do rescaldo das lembranças, os traços
fundamentais de veranistas e nativos, gente de uma vila que se fez com um povo
do mar.
É livro que nasce
lentamente e surge docemente, como a água fresca das cacimbas, refletindo no
espelho mágico as lembranças de um tempo imenso de vida. Como se repetissem,
num milagre de transição, os versos de Camões quando fala da dor das coisas que
passaram.
Mas, Ormuz também
ergue a cabeça, alonga seu olhar e se transmuda. É um biólogo a registrar a
fauna marinha. Um botânico a contar a vida de suas árvores. Um ouvinte a
guardar o canto dos pássaros da sua infância. Numa verdadeira cartografia
sentimental, os seus textos são também desenhos mapeando lembranças. Dos
pescadores, das velhas rendeiras com os bilros pulando nas mãos, dos tiradores
de coco, dos carpinteiros navais.
É como se Ormuz
Barbalho Simonetti, num gesto profundamente humano, fizesse do seu livro sobre
a Praia da Pipa uma nova Arca de Noé. E nela pudesse levar personagens, peixes,
árvores, bichos e pássaros do seu lugar para a grande ilha da memória. E,
assim, salvá-los do dilúvio do esquecimento.
Serejo: lição
Lição
Data: 23 outubro 2012 - Hora: 18:00 - Por: Vicente Serejo
Tenho sustentado aqui,
Senhor Redator, a despeito dos muxoxos e resmungos dos intolerantes, que nesta
Aldeia Velha já não temos elites. No máximo, e se muito, um tanto de ricos e um
pouco de muito ricos. E se a solidão, como no bolero, não apavora, é bom que de
vez em quando venham cair nos olhos outros olhares. De preferência, que não
sejam de mestres e doutores do óbvio, mas feitos da sensibilidade indispensável
dos que, mesmo vitoriosos no mercado, nem assim deixam de enxergar.
Falo do olhar de Nizan
Guanaes, um dos mais vitoriosos do grande mercado da publicidade e hoje um nome
internacional com agência em Nova Iorque, detentor de algumas das maiores
contas publicitárias do mundo. E ele escreveu na Folha de S. Paulo – sempre às
terças-feiras, na última página do caderno Mercado – agora para avisar a quem
queira saber: ‘Depois da nova classe média, este país precisa de uma nova
classe alta’. E acrescenta convicto: ‘O Brasil moderno exigirá uma nova elite’.
O pior, Senhor
Redator: não são os olhares burros que renegam a verdade. São os reacionários
de toda espécie, mas, sobretudo, os tardios. Enriquecidos nas últimas décadas e
de riquezas nascidas da especulação ou de consórcios com as burras do Estado. É
neles que floresce a reação contra o exercício da crítica, como se todo
questionamento minasse da vertente da inveja, quando não do despeito ou até da
frustração pessoal, traço medonho que marca a visão canhestra dos que se julgam
inquestionáveis.
Como escreve Nizan,
não se trata de desrespeitar ninguém com generalizações, mas é sempre bom não
esquecer que a mazela do dinheiro – se é que há alguma doença na riqueza – é
esquecer as velhas lições do saber popular que vem do fundo da noite e dos
tempos, como aquela do ‘pai que funda e o filho afunda’. Ou, aquela outra que
embora prosaica na sua pobre literatice, bem explica a sucessão da vida quando
se foi um neto rico, um filho próspero e alegre, para no fim ser apenas um
velho pobre.
Para Nizan, é muito
difícil acreditar no futuro de uma nação sem elites bem formadas, ‘dividida por
preconceitos e ódios’. E tem razão: nem a sanha contra os ricos como acontece
na França de hoje, nem o Brasil tal como ainda é, pois mesmo reconstruído nas
bases sociais e econômicas ‘por um líder sindical e uma economista vítima da
ditadura’, nem assim não pode se preparar para viver seu instante maior sem
formar elites para conduzi-lo no mundo sempre competitivo e a exigir eficiência
absoluta.
Nizan reclama de uma
classe rica brasileira que teima em deixar suas crianças crescendo nos
shoppings apenas ‘consumindo loucamente sem ter desafios e sonhos que
transcendam um abdome de tanquinho e o próximo modelo de iPhone’. Para ele,
rico e bom educador dos seus filhos, formar assim é ‘falta de amor com ela – a
criança – e falta de responsabilidade com o país’. Ou seja: ninguém com toda a
riqueza do mundo forma elites num shopping, na disputa de carrões e na
competição de grifes.
E sua constatação foi
real. Ele acabou de levar um dos seus filhos para um teste de admissão em duas
escolas Americanas e lá encontrou muitos pais chineses e indianos, e nenhum pai
brasileiro. E ele escreve irônico: ‘O português tão ouvido nas lojas de Nova
Iorque e Miami é bem menos ouvido na Harvard que eu e meu Antônio visitamos’.
Uma lâmina a cortar a carne da vulgaridade, ele completa: ‘Se você é brasileiro
e quer ter um caso secreto em Nova Iorque, leve sua morada para uma
biblioteca’.
E conta a visita que
fez ao muitas vezes milionário Bill Gates em sua casa: ‘Me emocionei andando
pela biblioteca dele. Estão lá os mais importantes livros da civilização humana
nas suas primeiras edições. E é óbvio que o dono daquela biblioteca vai
dividi-la com o mundo quando não estiver mais nele’. E acrescenta, assumindo um
tom conceitual e sem temer a intolerância dos que são apenas muito ricos e
tolos: ‘Ser rico é um privilégio, um direito e também uma responsabilidade’.
E resume, num
parágrafo, sua história: ‘Meu pai, que era médico, foi para a Inglaterra com
bolsa de estudos do governo e me levou para aprender inglês, conhecer o mundo e
não ter medo dele. Meu avô Demócrito Mansur de Carvalho, líder sindical
comunista, ensinou-me a amar Castro Alves. Minha mãe a amar Pablo Neruda e
Machado de Assis’. E conclui: ‘Já a classe alta tem motivos tão nobres quanto, embora
nem sempre tão evidentes: liderar essa transformação com valores includentes,
iluministas e brasileiros’. Enquanto isso, os nossos ricos aqui na aldeia,
arrotam, arrostam, arremedam.
domingo, 18 de novembro de 2012
Serejo: A Odisséia de Dorian
Data: 17 novembro 2012 - Hora: 18:03 - Por: Vicente Serejo
Ao prefaciar a edição
brasileira do Dicionário de Mitos Literários, de Pierre Brunel, até hoje
considerado um monumento do olhar francês sobre a mitologia, Nicolau Sevcenko
confessa que o poema Ulisses, de Fernando Pessoa, foi uma iluminação reveladora
do mito, uma força fixadora da realidade. E por isso a literatura é a lira do
homem moderno a cada instante de suas reinvenções.
O êxtase de Sevcenko
se estende no olhar de Dorian Gray Caldas sobre o mito, mas sem fazer de cada
ensaio só a narrativa de um leitor apaixonado. Talvez se repita nesta que
também é uma viagem mágica, aquele instante de grande visão de Blanchot ao
perceber que a vitória de Ulisses não foi resistir ao amavio do canto das
sereias, mas fundir sua voz à própria voz de Homero.
Aqui, como na
Odisséia, não importa saber o destino das sereias. Talvez seja verdadeira a
notícia de que elas tenham caído no mar. Importa perceber o papel de Dorian,
como um Ulisses, que não deseja substituir a Homero, mas viaja com a mesma
força narrativa inaugural, a desenhar com a sua palavra poética, novas e
fundadoras leituras sobre um velho imaginário que parecia esgotado.
Na sua visão mítica, Dorian se deixa amarrar ao mastro do seu
barco porque também não é prisioneiro de certezas. De ouvidos abertos, procura
nas grandes vozes do mundo o caminho para compreender o novo. E, como Todorov,
sabe que o canto das sereias, essa alegoria do sublime, morre de silêncio para
a vida surgir, assim como a literatura só nasce com a morte do apenas real.
Como é bonito
acompanhar Dorian Gray na visão metafísica de Leonardo da Vinci, não para
imitá-lo na técnica, mas para fazer sua parte no sonho humano e reconhecer no
homem sua alma de pássaro. De anjo, águia ou condor. Na tessitura dos
entrelaçamentos com os ícones mais modernos, como o Super-Homem que Dorian olha
como um sinal de Nietzsche – tão dionisíaco e tão apolíneo, entre a paisagem
exuberante e a pobre solidão do homem na sua espera angustiada de ser Deus.
É instigante seguir seu olho perscrutador, enfiar-se no
próprio olho e sair olhando com ele, ao mesmo tempo e numa sensação de
simultaneidade absoluta – as sombras e as luzes do desenho de Hundertwasser.
Talvez uma outra forma de entrelaçamento, aquela de Adorno ao vislumbrar no
canto das sereias – para ouvi-lo mais uma vez – o mítico e o racional na busca
do esclarecimento.
Diante deste livro que
nasce como verdadeiro monumento da ensaística do Rio Grande do Norte, a
sensação é a de ouvir as grandes vozes do silêncio, para usar a belíssima
expressão de André Malraux. De cada poema, quadro, escultura. Da vida
anoitecida pelo tempo. Vozes ouvidas e às vezes arrancadas, sem temer o
silêncio que para Kafka foi a maior arma das sereias.
Em Dorian,
principalmente neste livro, a técnica e a arte do ensaio se entrelaçam de forma
definitiva e magistral. Sem prender o olhar ao esquadro de modelos, como há de
fazer um grande escultor. A erguer, na harmonia e na aparente contradição das
formas, a grandeza que para os outros é o inesperado. Como Picasso diante de
Guernica, Dorian entrelaça na sua arquitetura ensaística os arabescos do bem e
do mal, do crime e da esperança, do grotesco e do sublime. Para depois voltar
ao seu mar antigo. Como um Ulisses.
Ainda que seja apenas o velho e mesmo mar, inesgotável e
surpreendente, que um dia inaugurou em seu espírito o grande destino de criador
de mundos.
Eis aqui este criador,
embriagado de palavras, cores e formas, a revelar o milagre da criação.
Natal, 2011, quando
ardem as fogueiras de São João.
Vicente Serejo
Serejo: Publicidade e preconceito
Data: 22 outubro 2012 - Hora: 18:06 - Por: Vicente Serejo
Tem horas que a gente
tem que passar a bola. É a hora do passe. Fiquei fascinado com a questão do
filme publicitário do colégio CEI Mirassol. Um tema fascinante, mas acabei
convencido de que não faria melhor do que o professor Alysson Freire. Não pelo
erro que aponta – essa é uma opinião, mas não é a única – mas por seu olhar
sobre a questão. Opinião que esta coluna transcreve em nome da pluralidade das
ideias, afinal o debate na área da comunicação e da publicidade não se pode
mais não esconder o enfrentamento nas sombras da intolerância.
Assim como a nossa
fala pode por vezes nos trair e revelar aquilo que de forma alguma
confessaríamos abertamente, também as imagens revelam sem que se dê conta o que
de fato pensamos sobre o mundo, ainda que a intenção e o objetivo tenham sido
radicalmente outros. Isto porque as imagens condensam crenças, significados,
visões de mundo, etc.. Por isso que, às vezes, uma imagem pode valer mais do
que mil palavras.
Foi exatamente nesta
“armadilha das imagens” em que incorreu a campanha publicitária do Colégio CEI
Mirassol, elaborada pela empresa Criola. A
propaganda exibe uma sessão de ultrasonografia onde os pais, cheios de orgulho
e planos, especulam e imaginam a futura profissão do filho. Os desejos e
expectativas dos pais sobre o “que o filhinho vai ser quando crescer”, se
médico, juiz ou engenheiro, são intercalados com imagens depreciativas de
outras ocupações, digamos, menos prestigiadas; “pai-de-santo”, juiz de futebol
e palhaço.
A cada expectativa e
profissão imaginada pelos pais corresponde uma outra ocupação e futuro em que
se vai do sonho à frustração, do sucesso ao fracasso, do orgulho à vergonha, do
prestígio social e status à condição de menosprezado.
O ser médico,
engenheiro ou juiz servem como metáforas para definir o que é um futuro e uma
pessoa de sucesso e prestígio ao passo que “macumbeiro”, palhaço e juiz de
futebol servem para definir as marcas do fracasso, da vergonha e do
desprestígio social. De um lado, os notáveis e exitosos, de outro, a ralé.
Assim, o médico,
símbolo máximo da credibilidade e da ciência é contrastado com um desacreditado
e mediúnico “pai-de-santo” – num claro estigma e desrespeito a outras crenças
religiosas; o engenheiro, símbolo da sisudez dos cálculos tem o seu oposto no
palhaço sem graça; e, por último, o juiz de direito, figura que exprime o ápice
da autoridade e do respeito possui como o seu avesso, o contestável juiz de
futebol, alvo máximo do desrespeito alheio e de todas as torcidas. As oposições
entre as profissões exprimem, na verdade, oposições morais;
credibilidade/incredibilidade, respeito/desrespeito, sucesso/fracasso. Essas
oposições morais definem o valor das profissões, e, por consequência, o valor
das próprias pessoas.
Ao final, a propaganda
encerra com uma frase que mais parece uma contundente chantagem: “não basta
sonhar com o futuro do seu filho, é preciso fazer a escolha certa”. Ou seja, o
“futuro certo” e a “profissão certa” para que seu filho possa ser “gente”
dependem da escolha pela “Escola Certa”, isto é, aquela que garante atingir a
expectativa da santíssima trindade médico-engenheiro-juiz; do contrário, aos
pais restaria não apenas ter de se contentar com sonho, mas com a possibilidade
real de vivenciar o fracasso, a frustração e a vergonha.
A propaganda não é
apenas preconceituosa e ofensiva, mas reveladora das hierarquias sociais e
morais que estão depositadas na maneira como as classes médias altas
brasileiras enxergam e dividem o mundo e as pessoas. Ele revela, portanto, o
preconceito profundo em que se sustenta a visão de mundo dessas camadas,
fundamentado particularmente na ideia da existência de ocupações e atividades
superiores e mais importantes, que brindam reconhecimento e distinção social,
em contraposição àquelas avaliadas como inferiores e menos importantes,
marcadas pelo menosprezo e desrespeito. Eis aí a medida com a qual cada um será
avaliado como alguém de sucesso e significativo para a sociedade ou simplesmente
como um “fracassado”, “inútil” e “invisível”.
É bem verdade que não
foi o CEI que produziu o vídeo. Porém, sua aprovação expressa mais do que uma
infelicidade: exprime a aceitação e reconhecimento da escola do conteúdo e das
mensagens contidas, ainda que ela não tenha se dado conta dessas dimensões mais
latentes. Muitos podem se surpreender e lamentar que uma instituição de
educação admita ou deixe passar despercebido tais alusões preconceituosas e
estigmatizadoras. Mas, de modo algum, isso é uma surpresa.
Afinal, conforme
sustenta o sociólogo Jessé Souza, numa sociedade que consente e naturaliza a
produção e classificação de “gente” e cidadãos, de um lado, e “subgente” e
“subcidadãos”, de outro, é evidente que tal consenso se manifeste, ora de modo
visceral ora de modo sutil, nas instituições de educação, sobretudo naquelas
escolas voltadas para a formação das classes médias alta.
Que a escola e os
educadores que a integram reavaliem a “pedagogia” contida na propaganda, pois a
tarefa essencial da educação e das escolas na formação das pessoas é contribuir
para a sua emancipação. Só podemos falar de emancipação quando esta é, também,
uma emancipação dos preconceitos, quer dizer, a superação de seu poder sobre
nós, nossos pensamentos e atos. E isto somente é possível questionando e
criticando concepções sociais como as que estão presentes na peça publicitária.
*) Professor de
Sociologia. Mestrando no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais – UFRN.
Editor e integrante do Conselho Editorial da Carta Potiguar. Contato:
alysonfreire@cartapotiguar.com
Serejo: A orfandade de Natal
Data: 19 outubro 2012 - Hora: 17:51 - Por: Vicente Serejo
Natal é hoje uma cidade órfã de líderes. Se não somos vítimas de
oligarquias, pagamos o preço de um processo oligarca que empobreceu a escola
política que nos anos sessenta formou uma geração inteira. De gestores públicos
a vereadores, governadores e senadores, despertando o espírito público que hoje
tanto nos falta. Dos filhos de seguidores de uma tradição passamos a herdeiros
de profissão e de empregos, mas sem preparo e buscando nutrir dos mandatos só
uma forma de consagração social.
Antigamente, os mais
jovens frequentavam a escola dos políticos. Eram oficiais de gabinete ou
aprendizes assessores, depois chegavam aos primeiros cargos ou depois de
credenciados pelo exercício da política, alcançavam as redações e as praças.
Hoje, não. Dos cueiros da família já saem para o treino geral de matreirice, e
de incautos passam a sabidos. De incúria é feito o nosso novo cenáculo, sem nem
ao menos um aprendizado consistente, até lúdico para treinar a alma humana nos
jogos da criação.
Não é só um fato
nacional alarmante, por si só, esse adiamento do comício da presidente Dilma
Rousseff para não sofrer esvaziamento de plateia com o público concentrado nos
capítulos finais da novela Avenida Brasil. Do macrocosmo, como gostam de dizer
os sociólogos e economistas, passemos ao microcosmo, e flagra também aí o dado
alarmante e demonstrador da nossa total falta de interesse: a abstenção dos
eleitores natalenses, somados aos nulos e brancos, venceu em Natal no primeiro
turno.
Só a abstenção –
ausência nas urnas – chega a 96.422 mil votos, a segunda posição na contagem
dos votos de candidatos, o que já revela todo o descrédito do natalense, se não
é o próprio desprezo diante de uma pobreza política que nas últimas décadas
destruiu a arte de liderar. Ainda que não fosse uma ciência, o exercício da
vida pública caiu no desvão do seu próprio vazio, e passamos à artimanha.
Nossos políticos usam as ruas e praças como cenários das imagens televisivas e
não como tribunas.
Foi o que nos legou o
jogo familiar nesses últimos vinte anos, jogado como uma forma de fazer
política. Duas famílias terceirizando a luta de Natal, alternando seus apoios a
uma mesma e única candidata pelo desinteresse em renovar de verdade seus
quadros. E na Câmara, a primeira escola legislativa formadora do espírito
público, quando um sobrinho fracassa nos descaminhos das pequenas ambições,
inventa-se outro. Ou, tanto pior, fazemos da política um descartável campo de
fenômenos.
Sejamos sinceros: quem
sente a inevitável necessidade de ouvi-los? Quem deseja participar da discussão
de suas ideias? Quem, por acaso, imagina vê-los construindo novos destinos e
conquistando um futuro coletivo? Ninguém. O que se tem é uma Natal
desinteressada a lançar seu olhar de desprezo por viver um terrível sentimento
de orfandade. Uma Natal sem líderes, hoje rica de gravatas e pobre de ideias.
Como se fosse possível revogar da política o belo exercício diário e
insubstituível da vocação
sábado, 17 de novembro de 2012
Antropologia visual
A Antropologia visual (por vezes designada
Antropologia da imagem ou Antropologia visual e da imagem) é um ramo da
antropologia cultural, aplicada ao estudo e produção de imagens, nas áreas da
fotografia, do cinema ou, desde os meados dos anos 1990, nos novos ‘’media’’
utilizados em etnografia. A antropologia cultural (ver artigo em inglês), a par
da antropologia física (estudo do Homem biológico e da sua evolução - ver
artigo em inglês), é uma bifuração da antropologia, enquanto ciência geral do
Homem.
Doc-ficção (como objecto de estudo)
Filme de ficção (como objecto de estudo)
Novas Midias
a percepção visual
a análise da imagem
a interpretação da imagem
a realidade - "o real"
Antropologia da arte
FISCHER, Michael D.; ZEITLYN, David. Visual anthropology in the digital mirror: Computer-assisted visual anthropology University of Kent at Canterbury, 2003 HTML, en. Set. 2012
KHOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Fotografia e Interdito. RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004 PDF Set. 2012
MAUSS, M. Manual de Etnografia. Lisboa:Ed.Portico, (1947) 1972.
SAMAIN, Etienne. “Ver” e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 23-60, jul./set. 1995 PDF Set. 2012
RUBY, Jay. Visual Anthropology. In Encyclopedia of Cultural Anthropology, David Levinson and Melvin Ember, editors. New York: Henry Holt and Company, vol. 4:1345-1351, 1996 HTML, en. Set. 2012
SOLHA, Helio Lemos. A Construção dos Olhares. Tese de mestrado sobre a Antropologia Visual (Unicamp), Campinas, SP 1998 Download Set. 2012
RONY, Fatimah Tobing. The Third Eye: Race, Cinema, and Ethnographic Spectacle. Duke University Press, 1966 Google Books Set. 2012
GREI - Grupo Interdisciplinar de Estudos da Imagem sobre Antropologia e Sociologia da Imagem.
Fundação Pierre Verger
em francês Société Française d'Anthropologie Visuelle
em espanhol Revista Chilena de Antropología Visual
em inglês Society for Visual Anthropology
Visual Anthropology.net.
Webring - Visual Anthropology
Center for Visual Anthropology University of Southern California. Set. 2012
John Collier (anthropologist)'s photographs, on Flickr Set. 2012
Envolve também o conceito o estudo
antropológico da representação visual, no ritual, no espetáculo, no museu, na
arte ou na produção ou recepção dos meios de comunicação de massa, os media.
Ver em inglês artigo sobre esta matéria
Aplica-se a designação para exprimir a ideia
de observação do real pela imagem, tida como mais “fiel” do que a palavra ou o
discurso (ver sobre este tema ensaios ‘’online” de Ricardo Costa), ou como
prova objectiva de determinado evento ou realidade.
No fundo, o conceito de antropologia visual,
embora se restrinja às aplicações que se usam nos métodos da ciência, no
sentido lato é uma questão central que surgiu desde que o Homem é homem : no
momento em que resolveu representar-se a si próprio pela imagem.
Desenvolvimento
Pode se considerar como precursores da
antropologia visual Walter Baldwin Spencer e Rudolf Poch, (Rony, 1966) eles
utilizaram pela primeira vez a máquina de filmar nas suas expedições,
retratando os hábitos de aborígenes para a criação de arquivos na Alemanha,
notando eles, pela primeira vez também, as distorções de comportamento das
pessoas representadas, distorções essas derivadas da simples presença e uso
dessa ferramenta, a câmara. Cultivam a antropologia visual, cada um a seu modo,
Robert Flaherty (cineasta e não cientista, mas inspirador do movimento),
Margaret Mead, Gregory Bateson (Trance and Dance in Bali) (artigo em inglês),
Marcel Griaulle (artigo em inglês), Germaine Dietrerlen (artigo em francês),
Jean Rouch, este numa perspectiva menos convencional, misturando documentário e
ficção em muitas das obras etno-cinematográficas que realiza, abrindo novas
portas à pesquisa antropológicas e à modernidade do cinema. Há imagens (sempre
as houve) em que o real se transfigura em arte, ao pôr a nu a beleza da
verdade.
Marcel Mauss (1872 - 1950) em seu Manual de
Etnografia (1947) situa o uso da fotografia entre os métodos de observação no
trabalho de campo. Destaca o valor da fotografia aérea, como auxiliar da
cartografia e do recurso das telefotos (para se evitar poses) recomendando
também a documentação fotográfica de todos os objetos e o uso excessivo de
imagens ou sua utilização sem registro detalhado (hora, local, distância, etc.)
das circunstâncias de sua utilização. Devem ser realizados comentários sobre
cada fotos e essas anotações incluídas no diário de campo. Observe-se, nessa
perspectiva, a qualidade dos registro e anotações de Bronisław Malinowski (1884
- 1942) na sua pesquisa entre os nativos dos arquipélagos da Nova Guiné e
Melanésia.
Cabe aos antropólogos atuais diferenciar as
contribuições de real valor etnográfico entre a profusão de imagens de nossa
época, face ao desenvolvimento das novas midias e entre os pintores /
desenhistas das grandes expedições naturalísticas tais como John Webber ( 1751-
1793 ), Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848), Rugendas (1802 - 1858) e nesse
sentido é esclarecedor a colocação de Etienne Samain sobre tais documentaristas
historiadores:
..."reconhecemos, primeiro, que não
faltam pesquisadores que não têm uma formação antropológica consistente e que,
no entanto, lançam-se de corpo e alma, com toda a parafernália ótica, na
aventura visual antropológica. Seus empreendimentos são generosos, sem dúvida,
mas nos decepcionam rapidamente, ou porque não souberam medir suficientemente a
viabilidade das realizações que vislumbravam, ou porque imaginaram que podiam
fazer a economia da complexidade dos fatos antropológicos que procuravam
registrar"... (Samain, 1995)
Antropologia visual no Brasil
Buscando os precursores dessa ciência no
Brasil não podemos deixar de contemplar a beleza e perfeição técnica da obra de
Marc Ferrez (1843 - 1923) e mais recentemente do também franco-brasileiro Pierre
Verger (1902 - 1996). O primeiro fotógrafo, foi um brasileiro, filho dos
franceses Alexandrine Caroline Chevalier e de Zéphyrin Ferrez, gravador de
medalhas e escultor vindo como membro da Missão Artística Francesa homônimo do
tio e escultor Marc Ferrez presente nessa mesma missão, retratou cenas dos
períodos do Império e início da República, entre 1865 e 1918. Poderia ser
considerado um pioneiro da Antropologia Visual no Brasil, contudo não era essa
a sua auto - referência, pois mais identificado por força de sua época, como um
naturalista - historiador e antes de mais nada fotógrafo, nos deixou um legado
sobre a vida urbana, rural e selvagem do Brasil que nos obriga a uma reflexão
sobre antropologia e história. Torna-se evidente em seu trabalho sobre o Brasil
a a identificação das etnias formadoras e/ou da processo histórico da
colonização e, por força de sua inserção social, como documentarista integrante
do governo brasileiro a ótica de registrar e progresso e avanço tecnológico de
nosso país.
Pierre Verger foi um fotógrafo e etnólogo
autodidata. Assumiu o nome religioso Fatumbi por também ser um babalawo
(sacerdote Yoruba) e de certo modo por ter dedicado grande parte de sua obra,
ainda não completamente conhecida e estudada, à cultura e religiosidade negra
no Brasil e África.
Filme
etnográfico
Etno-ficçãoDoc-ficção (como objecto de estudo)
Filme de ficção (como objecto de estudo)
Novas Midias
Objectos de estudo
o olhoa percepção visual
a análise da imagem
a interpretação da imagem
a realidade - "o real"
Antropologia da arte
Bibliografia
COSTA, Ricardo. A outra face do espelho. Jean Rouch e o “outro” PDF Set. 2012
COLLIER,
John . Antropologia visual, a fotografia como método de pesquisa. SP, EDUSP, 1973FISCHER, Michael D.; ZEITLYN, David. Visual anthropology in the digital mirror: Computer-assisted visual anthropology University of Kent at Canterbury, 2003 HTML, en. Set. 2012
KHOURY, Mauro Guilherme Pinheiro. Fotografia e Interdito. RBCS Vol. 19 nº. 54 fevereiro/2004 PDF Set. 2012
MAUSS, M. Manual de Etnografia. Lisboa:Ed.Portico, (1947) 1972.
SAMAIN, Etienne. “Ver” e “dizer” na tradição etnográfica: Bronislaw Malinowski e a fotografia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 1, n. 2, p. 23-60, jul./set. 1995 PDF Set. 2012
RUBY, Jay. Visual Anthropology. In Encyclopedia of Cultural Anthropology, David Levinson and Melvin Ember, editors. New York: Henry Holt and Company, vol. 4:1345-1351, 1996 HTML, en. Set. 2012
SOLHA, Helio Lemos. A Construção dos Olhares. Tese de mestrado sobre a Antropologia Visual (Unicamp), Campinas, SP 1998 Download Set. 2012
RONY, Fatimah Tobing. The Third Eye: Race, Cinema, and Ethnographic Spectacle. Duke University Press, 1966 Google Books Set. 2012
Ligações externas
em português Recursos sobre antropologia
visual (CEAS).GREI - Grupo Interdisciplinar de Estudos da Imagem sobre Antropologia e Sociologia da Imagem.
Fundação Pierre Verger
em francês Société Française d'Anthropologie Visuelle
em espanhol Revista Chilena de Antropología Visual
em inglês Society for Visual Anthropology
Visual Anthropology.net.
Webring - Visual Anthropology
Center for Visual Anthropology University of Southern California. Set. 2012
John Collier (anthropologist)'s photographs, on Flickr Set. 2012
xiurinja taispo / angirú tupa / pater.amicus
Para saber destas e outrashistórias do Movimento Indígena do RN ver em:
Professor Manoel.
Reside em um quarteirão de traz da Escola
Irma Arcângela, Ensina historia na Universidade Vale do Acaraú. Na sua casa,
durante as férias escolares, o Centro de Estudos Indígena do Igapó realiza suas
reuniões. O professor é pai de Gabi Amanguaçuporã, integrante do Centro de
Estudos desde 2007 quando foi aluna da Escola I. Arcângela.
No fim do ano na sua casa, Aderido
Rodrigues costuma ministrar aulas de guarani. O pajé Awá Zeruzã costuma
aparecer mode falar de plantas, o paraguaio Helio Cabrera vem pra tirar dúvidas
sobre o guarani, garotos do grupo Bonde dos Considerados fazendo repi. E lá vem
o professor, sempre sorridente, pondo as mesas, quadros, cadeiras, cafezinho
com bolachinhas, água, leptopi.
Serejo: O fim do mundo
Data:
16 novembro 2012 - Hora: 17:52 - Por: Vicente Serejo
Não sei Senhor Redator, se o mundo acaba em dezembro como anunciam os
profetas bíblicos ou zodiacais. Sei que o mar avança com o furor de mil gigantes.
Ontem, no 15 deste novembro, altruístico e republicano, uma das casinholas – de
madeira e cobertas de fibra – do porto onde os pescadores guardam as redes e
apetrechos, amanheceu com os alicerces devorados pelas águas. Foi preciso
escorar às pressas para não tombar. É a segunda. A terceira é a próxima. Já
mostra os seus tijolos, expostos à arrebentação.
Não é que se possa evitar o fim do mundo só com o escudo do medo. Ou
fugindo pelo oitão. Mas bem que poderia ser mais suave. Pelo menos para os que
vivem na beira do mar, ali na praia onde todas as ondas antes chegavam mansas
como se fossem simples remansos do que sobrou da viagem ao longo do maralto.
Agora se erguem furiosas, empurradas pelo vento Leste que parece ter escondido
a força das ventanias de agosto em algum lugar e agora chegam devolvendo tudo
quanto jogaram em suas águas.
Confesso Senhor Redator: não espero ver o mundo acabar. Não acho ser
coisa pros nossos dias. Deus deve andar arrependido de umas tantas coisas e com
remorso diante de umas tantas outras. Quem não estaria? Mas o mundo é a mais
bela criação de Deus. Foi aqui, criando a beleza do nada, no mar e no deserto,
que fez do vazio o grande instante da monumentalidade. E se nas descrições do
Paraíso há a ausência do mar, talvez tenha sido intencional. É que o mar tem
uma beleza só sua. Trágica e sublime.
Fui menino e hoje arrasto mais de sessenta anos ouvindo que o mar é
triste, tem a melancolia das coisas monótonas. Não, não é. A tristeza e a
alegria estão dentro de nós. No mar de dentro. Aquele feito das águas de nossas
próprias almas. É lá que flutuam as sensações humanas. No doce mar de Dorival
Caymmi, aquele que embala a morte e o sono cansado e humano de João Valentão,
ou o mar primevo e talássico de Baudelaire, espelho onde os homens contemplam
as mágoas da sua própria humanidade.
Por isso a beleza do mundo não vai acabar assim, num dia qualquer de
dezembro de um ano sem graça. É maior do que o apocalipse dos profetas e os
economistas, bruxos da eternamente anunciada crise. Li outro dia que a tristeza
dos catastróficos anunciando o fim do mundo infelizmente não seria mais em
dezembro deste ano. Outros, os inconformados, vendo que Deus não lhes deu a
menor satisfação, transferiram para 2018, quando um cataclismo destruirá num só
golpe toda a raça humana.
Aliás,
Senhor Redator, pra ser sincero, nada demonstra melhor a grandeza de Deus do
que a raça humana. Trágica e ao mesmo tempo sublime, há de ser fruto de sua
misericórdia. Ora, quem seria capaz de ungir todos os seres humanos à imagem e
semelhança de Deus? Sem distingui-los diante da grandeza de uns e da miséria de
outros? Quem perdoaria a todos, todos os dias, fracos e reincidentes, que
mordem o fruto proibido como se viver não fosse uma graça, e essa graça não
representasse o próprio Paraíso?
Serejo: Litigância hospitalar
Data: 18 outubro 2012 - Hora:
18:09 - Por: Vicente Serejo
Parece que tem sido muito difícil aos donos de
empresas hospitalares compreenderem, na sua essência, a natureza do negócio que
empreendem. Para eles, a menos que o façam por litigância de má fé – e neste
caso são passíveis de censura pública – a prestação de assistência a urgências
e emergências na área da saúde é igual a qualquer outro tipo de assistência
técnica. E que podem ou não, a seu juízo, de acordo com o livre arbítrio de
cada empresário e sem quaisquer direitos assegurados à sociedade.
Reincidentes, tentaram uma primeira vez a
greve patronal sem qualquer observância das leis que regulam esse tipo de
decisão. Como se fossem livres para movimentos paredistas acima de toda a força
conceitual do crime de omissão de socorro. Mesmo compelidos a manterem suas
portas abertas por decisão da Justiça, tentaram outra vez, agora arrimados numa
fixação de prazo com antecedência, convencidos de que desta feita seria fácil
driblar a norma legal, agora com feia e abusiva transgressão.
Os hospitais são estruturas juridicamente
híbridas nas relações com a Unimed. Dentro deles, na condição de sócios e
dirigentes, estão médicos que também são sócios da cooperativa e, portanto,
eleitores de suas decisões plenárias com acesso a todas as informações. Como
sabem, quando sentam à mesa de seus gabinetes hospitalares, que a Unimed
representa em média nada menos de cinquenta por cento do faturamento, o que por
si só garante uma magnitude que só pode ser negada como pressão.
Mais: seus clientes pagam suas mensalidades,
sem direito a voz e a voto, sob pena de suspensão automática da prestação de
serviço no prazo contratual. Ora, por mais leonino que possa ser quando se
fecha ao voto e à voz dos que pagam, não pode ser unilateral a ponto de
qualquer parceiro suspender o atendimento com a justificativa de um simples
aviso e como se a sociedade não fosse regida por leis e essas leis cuidassem
apenas de preservar a saúde financeira de uns contra a saúde da vida de outros.
Não se nega que as negociações entre a Unimed
e os hospitais se arrastam e que estes merecem ter os seus serviços
corretamente remunerados. Mas, daí a se permitir que vidas humanas venham a ser
usadas como buchas de canhão das empresas hospitalares, pressionando uma
cooperativa que também é deles, médicos, seria aceitar o caos como prumo e fio
de conduta. Não, não é assim que os parceiros devem conduzir suas relações, num
melancólico espetáculo de transgressões que beiram o cinismo.
Não queiram os donos de hospitais que a
sociedade livre e democrática aceite a reencarnação de Frederico II, o déspota
louco da Prússia na escuridão do século dezoito. Aquele que ao construir seu
castelo incomodou-se diante de um moinho que impedia a visão da bela paisagem
do alto das ameias e, irritado, quis comprá-lo ao proprietário que não aceitou
vender por ser uma velha tradição de família, de geração a geração. Ameaçado de
destruição, respondeu sem ter medo: ‘Ainda há juízes em Berlim’
Serejo: Mercado da saudade
Data: 17 outubro 2012 - Hora:
18:00 - Por: Vicente Serejo
Ora, ora, e eu que imaginava já ter guardado
nos salões da alma tudo quando seria doloroso esquecer, de repente descubro na
página de um jornal português um Mercado da Saudade. Cheio de certeza, pensei
comigo: bobagem. O que cada coisa possa dizer de mim, já tenho. Dos meus
teréns, modéstia à parte, cuido eu. Como se tudo coubesse num sótão, nem que a
sua noite tenha a iluminar apenas a chama bruxuleante de uma velha lamparina a
projetar nas paredes as réstias do passado.
Ninguém, Senhor Redator, se desfaz tão
facilmente da vida que passou. Há em cada coisa um pouco daquela dor
existencial das coisas que passaram como avisou Camões. Esses pedaços de dor
vão ficando aqui e ali. São os grãos da memória. Em Braga, leio no Jornal de
Notícias, de Lisboa, um mercado cuidou de ter nas suas prateleiras comidas,
bebidas e objetos tocados de uma certa e doce nostalgia. É lá que os
portugueses matam a saudade de tudo que um dia a noite dos tempos devorou.
Em Lisboa, no fim da pequena rua do lado da
velha e bela Livraria Bertrand, conheci há uns cinco anos uma loja assim. E
fiquei freguês. Não digo de todos os anos. Só quando posso, de vez em quando.
Lá comprei uma tabuada igual à da infância, uns poucos livros e as réplicas
perfeitas das três andorinhas do famoso Bordalo e que minha avó tinha no
terraço da sua casinha de duas arcadas, ali na Rua Potengi. Como se voassem no
céu branco da parede, elas azuis, hoje azulando na saudade.
Trouxe exatamente três, Senhor Redator, em
três tamanhos diferentes, e para que repitam aqui entre prateleiras de livros
velhos o mesmo vôo do meu tempo de menino, quando cheguei de Macau para estudar
na capital. Do lado, tinha o ABC com a sua sede moderníssima, seu chão em quadrados
pretos e brancos, suas festas elegantes e inacessíveis, cercada de taças e
troféus. O ABC dos filmes de Tarzan, com Johnny Weissmuller com aqueles seus
gritos na selva cheia de feras perigosíssimas.
Os portugueses, a exemplo da nossa
brasilidade, falam de sua portugalidade, uma expressão da afetividade lusa que
não conhecia, criada para designar o gosto e a saudade de tudo quanto pode ser
um retorno ao ontem. O Mercado da Saudade não vende ícones de tristeza. Pelo
contrário. É tanto que seu fundador tem só 34 anos e nada viveu de tão antigo
assim. Mas ele, que é design, percebeu que a saudade portuguesa não é triste. É
alegre e é essa alegria de rever que alimenta seu mercado.
Por isso fui lendo e
compreendendo esse mercado com nome de saudade. Não para vendê-la – a saudade é
algo muito pessoal e intransferível. Mas a saudade como leitmotiv. Como força
de uma inspiração que de repente se traduz num cheiro de um velho perfume ou um
antigo sabonete que na infância perfumava a sala de jantar. Por isso a minha
tabuada vive aqui, exposta a quem desejar revê-la, como era na infância. E da
parede, um dia, as minhas três andorinhas voarão. Como antigamente.
segunda-feira, 12 de novembro de 2012
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